A
FACA E O QUEIJO NA MÃO
A Ucrânia está em estado de guerra. Não é uma guerra
aberta, não há declarações de guerra, nem existem ferozes combates. Contudo, a guerra está omnipresente nos
espíritos, nas atitudes, nas decisões e nas movimentações de tropas e
equipamento bélico.
A Ucrânia é um país em alta tensão, sofrendo pressões
fracturantes um pouco por todo o território.
Ironicamente, a primeira cidade em que um grupo lavrou uma
declaração de independência unilateral foi Lvov, na Ucrânia Ocidental. Desde
então, multiplicaram-se as regiões e cidades do Leste do país que emitiram
declarações de autonomia e/ou de rejeição do novo poder de Kiev.
Notícias (rumores?) de rendições de tropas ucranianas e de
unidades a declararem fidelidade a Moscovo, também abundam. E há a Crimeia, é
claro, que parece já estar completamente fora do controlo de Kiev e à
disposição da Rússia.
uma possibilidade remota,
ou uma visão do futuro?
Como era previsível, as celebrações e o triunfalismo com a
consumação do golpe que derrubou Yanukovych, foram muito prematuras. Como já
aqui escrevemos (“Battleground of Eastern Europe” em http://tempos-interessantes.blogspot.pt/2014/02/battleground-of-eastern-europe.html ), o que que se dirime na
Ucrânia vai muito para além de Yanukovych e tem duas vertentes fundamentais:
uma geopolítica e com grandes implicações e interferências externas e uma outra,
de ordem interna, relacionada com a integridade e a viabilidade da Ucrânia.
GEOPOLÍTICA
Como já referimos em Tempos Interessantes, a Ucrânia é demasiado importante estrategicamente
para a Rússia para esta a deixar evoluir de forma que Moscovo entenda hostil,
sem colocar séria resistência. A partir do momento em que a oposição
apoiada pela Alemanha, Polónia e outros e alcandorada em grupos radicais logrou
tomar o poder, era expectável que a Rússia reagisse.
A reacção russa foi fulminante e claramente já estava preparada:
* Apoio discreto a todas
as manifestações de resistência e repúdio ao novo poder de Kiev.
* Pressão pública e
notória sobre a Ucrânia através da realização de grandes exercícios militares
de emergência na área do Distrito Militar Ocidental, entre o Mar Báltico e o
Mar Negro.
* Operações militares
cirúrgicas e discretas na Crimeia que efectivamente lhe conferiram o controlo
sobre a Península.
Estas acções deixaram os novos senhores de Kiev à beira de
um ataque de nervos porque não sabem quais são os próximos passos de Moscovo,
nem até onde eles irão; por outro lado,
sabem o que podem fazer para contrariar os Russos: muito pouco.
As chancelarias da Europa Ocidental e da América do Norte
entraram em histeria, gritando ameaças ocas e fazendo apelos frenéticos. Os EUA
e as principais potências europeias continuam a ter grande intolerância com
intervenções e ingerências que não as suas e continuam a não perceber ou a
aceitar que nem todo o mundo se rege pelas suas
regras.
Penso que não é muito provável que haja uma guerra. A
Rússia tentará atingir os seus objectivos sem ter de recorrer a um conflito
armado, evitando as consequências negativas de uma guerra. Certo é que já
controla a Crimeia sem disparar um tiro.
INTEGRIDADE E VIABILIDADE
Estas são as outras grandes questões que Kiev enfrenta: é possível
manter a Ucrânia una, quando a Crimeia e Donestk vão fazer referendos sobre a
sua relação com Kiev? E quando Lviv e o resto do Oeste ucraniano puxa para
Varsóvia e Berlim, ao mesmo tempo que Kharkov e o Leste puxam para Moscovo?
Como é possível retirar a Ucrânia do poço económico e financeiro em que se
encontra? E como reagirão os europeístas
de hoje quando descobrirem amanhã o preço da ajuda que a EU e o FMI prometem?
Será que o país entra em colapso se a Rússia fechar a torneira do gás? E se
fechar a torneira do financiamento? E se fechar a torneira do comércio?
Neste momento, a Rússia parece
ter a faca e o queijo na mão:
1- Tem um poder militar a que Ucrânia não tem possibilidades de
enfrentar.
2- Sabe que nem os EUA, nem a Alemanha, nem a Polónia, nem a NATO
intervirão militarmente para salvar os seus amigos em Kiev.
3- Tem uma panóplia de instrumentos económicos para espremer a Ucrânia.
4- Tem enorme apoio na Crimeia, que já controla.
5- Tem substancial apoio no Leste e Sul do país, curiosamente a
zona mais rica da Ucrânia.
O jogo ainda não acabou e reviravoltas podem acontecer, mas
neste momento a questão que se põe é: o que vai a faca fazer ao queijo? Ou, de
outra forma, até onde está a Rússia disposta a ir para obter o que quer que
seja que quer da Ucrânia.
P.S. A 21 de Fevereiro, no post “Kiev a
Ferro e Fogo”, escrevemos o seguinte:
Perante uma realidade em fluxo permanente e uma torrente de informações,
desinformações e rumores difíceis de filtrar e destrinçar, é particularmente
difícil prognosticar o curso futuro da Ucrânia. Mesmo assim, do meu ponto de vista, as tendências que se
desenham são:
* A desagregação do poder estabelecido a curto prazo.
* O protagonismo das forças radicais, a maioria das quais
violenta.
* Fracturas, até agora
incipientes, dentro do próprio país entre regiões com projectos e preferências
diferentes.
* Um incremento da
influência de países como a Alemanha e a Polónia no país.
* O aumento das
probabilidades de retaliações por parte da Rússia.
Todas estas tendências incorporam riscos enormes para o futuro
da Ucrânia. Estão em jogo a sua coesão geográfica e política; está em risco o
funcionamento do seu sistema político; e está em grave risco a situação
económica e financeira ucraniana, que já era grave antes da crise.
POSTS RELACIONADOS:
“KIEV A FERRO E FOGO”, 21/02/2014 em
http://tempos-interessantes.blogspot.pt/2014/02/kiev-ferro-e-fogo.html
“BATTLEGROUND OF EASTERN EUROPE”,
06/02/2014 em
http://tempos-interessantes.blogspot.pt/2014/02/battleground-of-eastern-europe.html
“SEM FUTURO”, 31/01/2014 em
http://tempos-interessantes.blogspot.pt/2014/01/sem-futuro.html
4 comentários:
Excelente Post!!
Bem mais elucidativo ler o que se passa na Ucrânia nos Tempos Interessantes do que nos jornais.
Abraço,
Fernando
Muito elucidativo. Excelente trabalho Rui Miguel!
Fernando,
Obrigado, pelo comentário/elogio/incentivo! Dá gosto e orgulho ter leitores assim!
Abraço
Bruno,
Não leves a mal, mas vou repetir a resposta anterior: "Obrigado, pelo comentário/elogio/incentivo! Dá gosto e orgulho ter leitores assim!"
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