03 março, 2014

A Faca e o Queijo na Mão


A FACA E O QUEIJO NA MÃO


A Ucrânia está em estado de guerra. Não é uma guerra aberta, não há declarações de guerra, nem existem ferozes combates. Contudo, a guerra está omnipresente nos espíritos, nas atitudes, nas decisões e nas movimentações de tropas e equipamento bélico.

A Ucrânia é um país em alta tensão, sofrendo pressões fracturantes um pouco por todo o território.

Ironicamente, a primeira cidade em que um grupo lavrou uma declaração de independência unilateral foi Lvov, na Ucrânia Ocidental. Desde então, multiplicaram-se as regiões e cidades do Leste do país que emitiram declarações de autonomia e/ou de rejeição do novo poder de Kiev.

Notícias (rumores?) de rendições de tropas ucranianas e de unidades a declararem fidelidade a Moscovo, também abundam. E há a Crimeia, é claro, que parece já estar completamente fora do controlo de Kiev e à disposição da Rússia.

Ucrânia Ocidental e Ucrânia Oriental:
 uma possibilidade remota, ou uma visão do futuro?
in STRATFOR em http://www.stratfor.com/

Como era previsível, as celebrações e o triunfalismo com a consumação do golpe que derrubou Yanukovych, foram muito prematuras. Como já aqui escrevemos (“Battleground of Eastern Europe” em http://tempos-interessantes.blogspot.pt/2014/02/battleground-of-eastern-europe.html ), o que que se dirime na Ucrânia vai muito para além de Yanukovych e tem duas vertentes fundamentais: uma geopolítica e com grandes implicações e interferências externas e uma outra, de ordem interna, relacionada com a integridade e a viabilidade da Ucrânia.


GEOPOLÍTICA

Como já referimos em Tempos Interessantes, a Ucrânia é demasiado importante estrategicamente para a Rússia para esta a deixar evoluir de forma que Moscovo entenda hostil, sem colocar séria resistência. A partir do momento em que a oposição apoiada pela Alemanha, Polónia e outros e alcandorada em grupos radicais logrou tomar o poder, era expectável que a Rússia reagisse.

A reacção russa foi fulminante e claramente já estava preparada:

* Apoio discreto a todas as manifestações de resistência e repúdio ao novo poder de Kiev.

* Pressão pública e notória sobre a Ucrânia através da realização de grandes exercícios militares de emergência na área do Distrito Militar Ocidental, entre o Mar Báltico e o Mar Negro.

* Operações militares cirúrgicas e discretas na Crimeia que efectivamente lhe conferiram o controlo sobre a Península.

Estas acções deixaram os novos senhores de Kiev à beira de um ataque de nervos porque não sabem quais são os próximos passos de Moscovo, nem até onde eles irão; por outro lado, sabem o que podem fazer para contrariar os Russos: muito pouco.

As chancelarias da Europa Ocidental e da América do Norte entraram em histeria, gritando ameaças ocas e fazendo apelos frenéticos. Os EUA e as principais potências europeias continuam a ter grande intolerância com intervenções e ingerências que não as suas e continuam a não perceber ou a aceitar que nem todo o mundo se rege pelas suas regras.

Penso que não é muito provável que haja uma guerra. A Rússia tentará atingir os seus objectivos sem ter de recorrer a um conflito armado, evitando as consequências negativas de uma guerra. Certo é que já controla a Crimeia sem disparar um tiro.


INTEGRIDADE E VIABILIDADE

Estas são as outras grandes questões que Kiev enfrenta: é possível manter a Ucrânia una, quando a Crimeia e Donestk vão fazer referendos sobre a sua relação com Kiev? E quando Lviv e o resto do Oeste ucraniano puxa para Varsóvia e Berlim, ao mesmo tempo que Kharkov e o Leste puxam para Moscovo? Como é possível retirar a Ucrânia do poço económico e financeiro em que se encontra? E como reagirão os europeístas de hoje quando descobrirem amanhã o preço da ajuda que a EU e o FMI prometem? Será que o país entra em colapso se a Rússia fechar a torneira do gás? E se fechar a torneira do financiamento? E se fechar a torneira do comércio?


Neste momento, a Rússia parece ter a faca e o queijo na mão:

1- Tem um poder militar a que Ucrânia não tem possibilidades de enfrentar.

2- Sabe que nem os EUA, nem a Alemanha, nem a Polónia, nem a NATO intervirão militarmente para salvar os seus amigos em Kiev.

3- Tem uma panóplia de instrumentos económicos para espremer a Ucrânia.

4- Tem enorme apoio na Crimeia, que já controla.

5- Tem substancial apoio no Leste e Sul do país, curiosamente a zona mais rica da Ucrânia.


O jogo ainda não acabou e reviravoltas podem acontecer, mas neste momento a questão que se põe é: o que vai a faca fazer ao queijo? Ou, de outra forma, até onde está a Rússia disposta a ir para obter o que quer que seja que quer da Ucrânia.


P.S. A 21 de Fevereiro, no post “Kiev a Ferro e Fogo”, escrevemos o seguinte:


Perante uma realidade em fluxo permanente e uma torrente de informações, desinformações e rumores difíceis de filtrar e destrinçar, é particularmente difícil prognosticar o curso futuro da Ucrânia. Mesmo assim, do meu ponto de vista, as tendências que se desenham são:

            * A desagregação do poder estabelecido a curto prazo.

            * O protagonismo das forças radicais, a maioria das quais violenta.

* Fracturas, até agora incipientes, dentro do próprio país entre regiões com projectos e preferências diferentes.

* Um incremento da influência de países como a Alemanha e a Polónia no país.

* O aumento das probabilidades de retaliações por parte da Rússia.

Todas estas tendências incorporam riscos enormes para o futuro da Ucrânia. Estão em jogo a sua coesão geográfica e política; está em risco o funcionamento do seu sistema político; e está em grave risco a situação económica e financeira ucraniana, que já era grave antes da crise.

  

POSTS RELACIONADOS:


“KIEV A FERRO E FOGO”, 21/02/2014 em
http://tempos-interessantes.blogspot.pt/2014/02/kiev-ferro-e-fogo.html

“BATTLEGROUND OF EASTERN EUROPE”, 06/02/2014 em
http://tempos-interessantes.blogspot.pt/2014/02/battleground-of-eastern-europe.html

“SEM FUTURO”, 31/01/2014 em
http://tempos-interessantes.blogspot.pt/2014/01/sem-futuro.html

4 comentários:

Anónimo disse...

Excelente Post!!

Bem mais elucidativo ler o que se passa na Ucrânia nos Tempos Interessantes do que nos jornais.

Abraço,
Fernando

Bruno Rodrigues disse...

Muito elucidativo. Excelente trabalho Rui Miguel!

Rui Miguel Ribeiro disse...

Fernando,

Obrigado, pelo comentário/elogio/incentivo! Dá gosto e orgulho ter leitores assim!

Abraço

Rui Miguel Ribeiro disse...

Bruno,

Não leves a mal, mas vou repetir a resposta anterior: "Obrigado, pelo comentário/elogio/incentivo! Dá gosto e orgulho ter leitores assim!"