07 março, 2014

Do Kosovo à Crimeia

DO KOSOVO À CRIMEIA

Do Kosovo à Crimeia são 1680 km. Entre os dois territórios distam também 15 anos.


KOSOVO: 15 anos antes e 1680 km a Oeste da Crimeia.
in STRATFOR em http://www.stratfor.com/

Em 1999, a NATO liderada pelos Estados Unidos bombardeou a província sérvia do Kosovo por causa de massacres cometidos por forças sérvias sobre kosovares. Simultaneamente, a NATO bombardeou extensivamente o resto da Sérvia, incluindo a capital Belgrado, onde também rebentou a embaixada da China. A realidade dos factos demonstrou que muito para além da salvaguarda dos Albaneses do Kosovo, os objectivos eram derrubar o regime sérvio de Milosevic e impor a independência da província do Kosovo, retalhando unilateralmente a Sérvia.

Em 2014, a Rússia tem passado os últimos dias a ocupar a Península da Crimeia, pertencente à Ucrânia. Sem precisar de recorrer a uma campanha aérea, a Rússia controla os pontos estratégicos da Crimeia, impôs um bloqueio naval, fechou o espaço aéreo e neutralizou ou confinou as forças ucranianas. Um dos cenários possíveis é a anexação da Crimeia pela Rússia, retalhando unilateralmente a Ucrânia.

Em 1999, o ataque ao Kosovo não foi sancionado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Foi então criada a narrativa de que a NATO, enquanto aliança militar hegemónica e com capacidade de intervir na sua área de influência, conferia legitimidade à intervenção.

Em 2014, o ataque russo não foi sancionado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Foi então criada uma narrativa segundo a qual a Rússia foi instada a proteger os Russos da Crimeia dos vândalos de Kiev.

Após 1999, o caminho para a independência do Kosovo foi fundamentado na auto-determinação dos Albaneses do Kosovo, cerca de 80% da população.

Em 2014, o caminho para a independência (ou integração na Rússia) da Crimeia foi fundamentado na decisão votada pelos deputados do parlamento regional da Crimeia (78 votos a favor e 6 abstenções) e poderá ser confirmada no exercício da auto-determinação dos Russos da Crimeia, cerca de 60% da população, no próximo referendo.

Em 1999, a Rússia foi enganada e humilhada pelos Estados Unidos no Kosovo. A sua impotência no consulado pós-soviético de Boris Yeltsin obrigou-a a comer e calar. Por isso, tudo se desenrolou de acordo com a vontade de Washington.

Em 2014, a Rússia tem o poder de intervir na Ucrânia e ninguém tem a capacidade e ainda menos a vontade de a impedir. Por isso, tudo poder-se-á desenrolar de acordo com a vontade de Moscovo.


CRIMEIA: 15 anos depois e 1680 km a Leste do Kosovo.
in SKYNEWS em http://www.news.sky.com/  


Qual é a moral destas histórias paralelas?

1- As grandes potências exercem o seu poder na medida dos seus interesses, como e quando lhes convém, com os pretextos e justificações que conseguem encontrar. E encontram sempre.

2- As grandes potências encontram sempre legitimidade nas suas intervenções e malignidade nas dos outros.

3- Os EUA e o Ocidente ainda não perceberam que o que fazem hoje pode condicionar o que se passa amanhã. Vide as consequências da adulteração e abuso da intervenção na Líbia na obstrução russa e chinesa a uma solução na Síria (ver “Líbia, Síria, EUA e Rússia” em http://tempos-interessantes.blogspot.pt/2012/04/libia-siria-eua-e-russia-osflash-points.html ).

Olhando para além da espuma mediática e da barulheira diplomática, aquilo a que assistimos na Ucrânia é….normal. Pode não se gostar, mas é normal. Dois personagens patéticos como Durão Barroso e John Kerry, clamaram que a atitude russa é inesperada e inadmissível no século XXI e que seria típica do século XIX. Para além de ignorarem o que se passou no século XX, parecem ter esquecido que o século XXI já testemunhou a Guerra do Afeganistão, a Guerra do Iraque, a Guerra Russo-Georgiana, o ataque à Líbia, a Guerra Civil da Síria e múltiplos conflitos internos e internacionais no Iémen, na Somália, no Sudão, no Sudão do Sul, no Paquistão, em Gaza, no Congo, no Mali, etc, etc, etc. E o século XXI ainda está no início.

Interessante é notar alguns paralelismos onde poderia parecer que eles não existiam e tentar perceber os interesses, as motivações, os receios, a História, que condicionam e movem os Estados e, neste caso, as grandes potências. Então poderemos perceber que, não obstante as declarações grandiloquentes e as diferenças que efectivamente existem, há também muito que une as grandes potências.


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“A FACA E O QUEIJO NA MÃO”, 03/03/2014 em

“KIEV A FERRO E FOGO”, 21/02/2014 em

“BATTLEGROUND OF EASTERN EUROPE”, 06/02/2014 em

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KOSOVO:

“PSEUDO-ESTADO”, 21/12/2010 em

“VESPEIRO BALCÂNICO”, 22/03/2008 em

“MITROVICA”, 19/02/2008 em



4 comentários:

Bruno Rodrigues disse...

Brilhante o contexto e a perspetiva histórica. Sou um leitor cada vez mais assíduo.
Um abraço.

Defreitas disse...

Excelente, como de costume.

Rui Miguel Ribeiro disse...

Bruno,

Só posso agradecer-te novamente. :-)

Já agora, se não for abusivo, divulga o blog junto de quem se possa interessar por estes assuntos.

Abraço

Rui Miguel Ribeiro disse...

Sr. Freitas Pereira,

Seja bem reaparecido e muito obrigado pela gentileza.