VISTA DE MOSCOVO
Vamos contar a mesma história com uma narrativa diferente. Como
se vê a Crise da Ucrânia a partir de Moscovo?
Todos os países têm interesses. As grandes potências
têm, por definição, interesses mais amplos. A Rússia não foge à regra.
A Ucrânia representa um interesse vital para a Rússia. Os
motivos são de ordem geopolítica, histórica, cultural, linguística, étnica e
religiosa. A Ucrânia e a Bielorrússia, pela posição que ocupam são de enorme
importância para a Rússia. Sem qualquer deles, a vulnerabilidade da Rússia
aumenta exponencialmente. Nenhuma outra potência tem um interesse tão forte na
Ucrânia.
A instrumentalização dos protestos contra o Presidente
Yanukovych, a sua intensificação e o coup d’état que culminou o processo foi,
na interpretação mais benigna, um ataque aos core interests da Rússia. Se eu consigo ver isso, imaginem como serão
as coisas vistas de Moscovo. Vista de Moscovo, foi mesmo isso, ou talvez até um
pouco mais.
Não vale a pena carpir sobre as maldades de Putin, ou repudiar a existência de interesses
específicos sobre países terceiros, ou vilificar o conceito de esferas de influência.
Tudo isto existe e não é, obviamente, exclusivo da Rússia. Basta pensar como reagiriam os Estados Unidos se uma
grande potência adquirisse um poder tutelar, ou até simplesmente uma forte
influência sobre o México.
Isto para dizer que as proclamações de virgens ofendidas
provenientes de Washington, Berlim, ou Varsóvia, valem zero, a não ser como
campanha de PR para justificar as acções contra a Rússia. É óbvio que estes e outros países sabiam que estavam a
atravessar uma red line de Moscovo e que a apropriação
da Ucrânia seria encarada como um cerco à Rússia. Um ataque, portanto.
Caracteristicamente, os EUA, habituados a ter o
exclusivo do benigno e justificado
uso da força, ficaram chocados e reagiram com despeito. As sanções à Rússia
foram uma solução low-cost para castigar o infractor do monopólio americano.
Menos compreensível é a reacção das potências europeias,
aparentemente arrastadas pela histeria anti-russa dos EUA, Polónia e Lituânia.
Ao contrário dos EUA, as sanções são high-cost para países como a Alemanha,
Itália, Hungria, Eslováquia, Bulgária, entre outros e poderão sê-lo também para
o Reino Unido e para a França. E não parece fácil que os potenciais ganhos
excedam os custos.
Os ganhos são o alastrar da esfera de influência (sim, leu bem,
esfera de influência) da Alemanha, com a Polónia no papel de adjunto e o
enfraquecimento da Rússia.
Os custos, para além das sanções, são o irritar a Rússia,
tornando-a mais agressiva e menos previsível e acarretar com o encargo da
viabilização de um país falido e divido. Em último caso, os custos podem subir
à escala de uma guerra de grandes proporções.
Vale a pena? Não me parece.
Exactamente há 75 anos, a 1 de Setembro de 1939, a
Alemanha lançou um ataque fulminante (Blitzkrieg) sobre a Polónia, despoletando
a II Guerra Mundial. Dezasseis dias depois, a União Soviética invadiu a Polónia
consumando mais uma repartição do país. Volvidos menos de dois anos, o acordo
entre Hitler e Staline desfez-se quando a Alemanha invadiu a URSS (Ucrânia
incluída) na sua procura de Lebensraum (espaço vital) e hegemonia.
75 anos volvidos, será isso que a Alemanha procura? Sem os
Panzer, mas com o Deutsche Euro?
Vista de Moscovo, a mudança de regime e
o realinhamento de Kiev com o Ocidente, só pode significar mais um e decisivo
passo no cerco à Rússia. Durante a década de 90, a Rússia passou de um império
que lutava pela hegemonia global para um fantasma dos seus tempos de poder,
fraco, acossado e tornado joguete pelo Ocidente. Esse Ocidente não parece ter percebido
que a Rússia de hoje, embora muito distante da URSS, também é muito diferente
da de Yeltsin.
Vista de Moscovo, as acções americanas
e alemãs na Ucrânia são reminiscentes do alargamento da NATO até ao Báltico,
das revoluções coloridas na Ucrânia e na Geórgia em 2004/05 e do ataque à
Sérvia e ao seu desmembramento parcial em 1999.
Consequentemente, vista
de Moscovo, a Batalha da Ucrânia não
pode ser perdida pois aproxima-se de uma batalha pela sobrevivência, pelo menos
da Rússia enquanto grande potência. Por isso a Rússia está a dar luta. Faz como
os outros, bate-se pelos seus interesses com os meios ao seu alcance. Chama-se
Power Politics.
Vladimir Putin empenhou-se em devolver à Rússia poder, estatuto
e alguma grandeza.
Vista de Moscovo, o que está em jogo é esse estatuto da Rússia.
Vista de Moscovo, o ataque ocidental à Ucrânia é a pedra de
toque para reduzir a Rússia à insignificância de há 20 anos.
Vista de Moscovo, essa é uma perspectiva inaceitável.
2 comentários:
Mais um excelente "post" , Caro Professor. Tudo está dito. Claro que não somos supostos compreender. Somos supostos odiar. Os média estão lá para isso.
Enquanto que o Ocidente recusa obstinadamente de compreender Putin e a Rússia, Vladimir Putin, ao contrário, parece compreender as coisas bastante bem.
Parece compreender que ele e a sua Nação são sistematicamente atraídos numa ratoeira mortal por um inimigo que excela na arte contemporânea da "comunicação". Numa situação de guerra, a comunicação da NATO significa que os factos importam pouco. O que importa é de controlar a narrativa. Aquela que é apresentada pelos média ocidentais só pode funcionar com a condição de não compreender a Rússia, e de não compreender Putin.
Na versão Ocidental, Putin e a Rússia são os maus da história, simplesmente a ultima reincarnação de Hitler e da Alemanha nazi.
O controlo do governo de Kiev pelo Ocidente é claramente uma provocação para atrair Putin numa ratoeira na qual certos estrategas ocidentais, entre os quais um certo Zbigniew Brzezinski, estratega chefe, esperam provocar a queda de Putin e mergulhar a Rússia numa crise que pode eventualmente conduzir à sua implosão.
A meu ver, Putin só pode desejar uma solução pacífica à baralhada ucraniana.
Enquanto Washington, volta assim, à política de guerra fria de "containement" para "isolar" a Russia, Putin é obrigado a jogar as suas cartas, e ele tem varias, cuidadosamente, e neste jogo, os europeus só podem vir a perder.
Quando vejo o aprendiz feiticeiro François Hollande, armado em fiel caniche de Obama e da NATO, retardar a expedição dum barco de guerra encomendado e pago pelos Russos, e atrasar a construção do segundo, correndo o risco de mandar para o desemprego centenas de trabalhadores dos canteiros navais de S.Nazaire, demonstra até que ponto os ocidentais estão nas mãos do tal "backdriver" !
Como se Cameron proibisse os oligarcas mafiosos Russos de trazerem rios de dinheiro para a City de Londres!
Muito obrigado Sr. Freitas Pereira!
Estou de acordo consigo. Eu gosto de muitas coisas nos EUA, mas detesto outras. Uma das que me é difícil compreender é o ódio que muitos no establishment político nutrem pela Rússia. E depois dizem que o Putin é que tem um "Cold War mindset"!!!
Quanto aos media ocidentais, desempenham um papel vergonhoso. Vergonhoso!
Hollande surpreendeu-me, mais uma vez, pela negativa. Ele que recusara terminatemente suspender a entrega . dos navios, deu uma cambalhota. É mesmo fraco. Diria mesmo otário, porque tornou a França a pot~encia ocidental mais prejudicada neste caso.
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