27 março, 2006

Delírio em Bagdad

DELÍRIO EM BAGDAD

Já se sabia que Hitler tinha passado uma boa parte dos seus últimos dias a congeminar planos de contra-ataque da Wehrmacht Alemã e de renascimento do III Reich, quando o Exército Vermelho já estava às portas de Berlim e os Exércitos dos Estados Unidos e do Reino Unido já tinham atravessado o Elba. Esses momentos finais do desvario nazi são exemplarmente retratados no filme “Der Untergang” (“The Downfall”).

Agora ficou a saber-se que os últimos dias de Saddam Hussein no poder tiveram semelhanças notáveis com os do Fuehrer. Rodeado de um círculo de políticos e militares apavorados com a perspectiva de ter de dar más notícias ao líder (em 1982 um Ministro da Saúde foi esquartejado por sugerir que Saddam se devia afastar temporariamente para o Iraque poder fazer a paz com o Irão), o “Senhor de Bagdad” viveu na ilusão de que as tropas dos Estados Unidos, Reino Unido e Austrália podiam ser detidas e que ele poderia permanecer no poder.

O US Joint Forces Command (USJFCOM) encomendou um trabalho sobre o funcionamento do regime iraquiano antes e durante a guerra. Com acesso a centenas de milhares de documentos e entrevistando dezenas de antigos líderes político e militares, os autores escreveram um extenso relatório, que foi parcialmente disponibilizado no mês passado. A revista Foreign Affairs publica um resumo de 12 páginas na sua edição de Maio/Junho 2006, mas que já está disponível online.

Este trabalho permite confirmar que Saddam Hussein contava com a simpatia da França e da Rússia (leia-se os milhões de Dólares de lucrativos negócios que os dois países tinham com o Iraque) para travar os ímpetos belicosos de Washington e de Londres ou, pelo menos, para pressionar para o final das hostilidades antes que as tropas da coligação liquidassem o regime. Diga-se que a complacência de Paris e de Moscovo para com Saddam já era sobejamente conhecida.

Saddam Hussein também caiu noutro pecadilho recorrente dos regimes opressivos: a estrutura militar e de segurança estava mais orientada para a prevenção de ameaças internas (revoltas de Curdos no Norte ou de Xiitas no Sul, golpes de estado) do que para as funções primordiais de umas forças armadas: fazer a guerra. Já as forças anglo-saxónicas rompiam pelo Iraque e Saddam ainda se preocupava com eventuais rebeliões internas, porventura pensando que a Guerra de 2003 ia ser como a Guerra do Golfo de 1991: os Aliados pararam muito antes de chegarem a Bagdad e Saddam reprimiu com violência as revoltas internas que se seguiram. Enganou-se.

Engano é, aliás, pouco para descrever o que se passava na liderança iraquiana. O impagável Ministro da Informação do Iraque, Muhammed Al-Sahaf que tanto nos divertiu durante a Guerra com as suas bazófias e proclamações de vitória não era, afinal, um caso isolado de alucinação ou de comédia. A liderança iraquiana acreditava que os EUA estavam em sérias dificuldades, o que só se pode explicar ou por loucura, ou pelo pavor que os comandos militares tinham em transmitir relatórios verdadeiros. Com os carros de combate americanos a cerca de 160km da capital, o governo iraquiano transmitia a Moscovo, Paris e Pequim a sua disponibilidade para aceitar a retirada incondicional das tropas da Coligação do Iraque!

Na Primavera de 2003, o delírio em Bagdad era colectivo, e começava no próprio Saddam Hussein.

23 março, 2006

Laranja Sedenta

LARANJA SEDENTA


XXVIII Congresso do PSD, em Lisboa. Estatutos em jogo, eleições directas são o grande (único?) destaque.

Pedro Santana Lopes propôs este sistema em 1996; Luís Filipe Meneses em 2005; Luís Marques Mendes em 2006. O anterior Presidente, o actual Presidente e o possível futuro Presidente do PSD, convergem na mudança estatutária fundamental. Mesmo assim são necessárias laboriosas negociações para garantir os 60% (estatutariamente) necessários para alterar os estatutos. O Congresso boceja.

Contados os votos, as eleições directas colhem cerca de 80% dos votos. Vitória esmagadora. Entusiasmo nulo. Os vencedores são tantos que ninguém sai em triunfo. Os vencidos vão embora com a discrição garantida pelo desinteresse geral.

Terminado o turbilhão de um ano de avalanche eleitoral, perdendo as eleições mais importantes, mas com um score final favorável de 2-1, o PSD olha para aridez de mais de 3 anos de um deserto eleitoral e a laranja parece mirrar, sedenta de ideias, carente de causas e de objectivos. E o problema principal não estará nos Estatutos.

15 março, 2006

IRS, Liberdade e Responsabilidade

IRS, LIBERDADE E RESPONSABILIDADE


Hoje é aquele dia do ano em que mais me consciencializo dos milhares de euros que entrego ao Estado anualmente, via IRS e contribuições para a Segurança Social. É um dia deprimente: muito pior do que ter de esperar na fila para pagar, é pensar no que pago, no que (não) recebo e no que poderia fazer com o (demasiado) dinheiro que sou obrigado a entregar.

O Estado Português nunca foi muito diligente na qualidade e eficácia dos serviços que presta aos seus cidadãos. Aliás, só recentemente deixou de encarar os cidadãos como uma maçada que tinha de aturar por especial favor, porque o ideal é que estes pagassem e não incomodassem. Se, por um lado, essa atitude tem vindo a mudar, por outro, o Estado tem procurado desobrigar-se, ou mudar os termos dos compromissos que tinha com os Portugueses. Tal é compreensível à luz das dimensões estratosféricas que a despesa pública vinha atingindo e da necessidade de todos, Estado, empresas, cidadãos, Portugal, se tornarem mais competitivos e eficazes internamente e no exterior.

Ora se o Estado reconhece que tem de fazer menos e reduzir o que é gratuito, será legítimo que os cidadãos também queiram pagar menos ao Estado. A responsabilidade e a liberdade individuais poderiam ganhar uma renovada expressão, se nos fosse devolvida uma maior margem de decisão na nossa existência (por exemplo, alguma margem de escolha nos modelos e quantitativos de poupança para a reforma), juntamente com os meios que dessem significado a essa liberdade.


Obviamente que esse novel rendimento disponível seria acompanhado da responsabilidade da gestão do mesmo. Quem desbaratasse os seus rendimentos não poderia ter a expectativa de ser resgatado ou compensado pelo Estado. É tempo de os cidadãos recuperarem alguma da sua liberdade, exercerem-na com responsabilidade e largarem a Estado-dependência.

10 março, 2006

Glorioso

GLORIOSO

A passada quarta-feira foi um dia glorioso para o Glorioso, passe a redundância: pela primeira vez em 50 anos de competições da UEFA, um clube português, o Benfica, eliminou o Campeão Europeu em título, no caso o Liverpool.

E fê-lo com eficácia, competência e, pontualmente, brilhantismo num ambiente adverso. Ainda melhor, o Benfica triunfou de forma inequívoca: 3-0 no conjunto dos jogos do Estádio da Luz e de Anfield Road.

O futebol é uma área muito particular da nossa vida colectiva com características peculiares, mas Portugal muito teria a ganhar se enfrentasse os seus desafios com os predicados que o Benfica mostrou no Reino Unido. Tal como o Benfica, podíamos ou não ser Campeões Europeus, mas seguramente estaríamos muito melhor do que estávamos na casa de partida.

Regressando à Liga dos Campeões, Barcelona é o próximo desafio e, porventura, o mais árduo. Dentro de semanas se saberá se constituiu a estação terminal, ou se foi mais um apeadeiro na rota do sucesso, mas uma coisa é certa: o nosso objectivo é vencer.
 

09 março, 2006

Cavaco Silva

CAVACO SILVA

O Professor Cavaco Silva tomou posse como Presidente da República de Portugal. Sendo oriundo do centro-direita e acreditando no perfil e capacidades de Cavaco Silva, é com natural satisfação que testemunho este momento.

De Cavaco Silva espero qualidades que já demonstrou: seriedade, competência, determinação e lealdade perante os Portugueses. Espero que denuncie o que está mal e que apoie o que está bem. Espero um discurso directo, acutilante e inteligível. Espero que não prescinda de responsabilizar o poder. Espero solidariedade institucional sem favoritismos partidários, mas sem renunciar ao seu ideário político.


Em suma, espero que seja melhor.

07 março, 2006

A Peaceful Nuclear Explosion

A PEACEFUL NUCLEAR EXPLOSION


Os Estados Unidos e a Índia chegaram a um acordo sobre matéria nuclear.

Sou daqueles que, por regra, não acredita que um mau acordo seja melhor que a ausência de acordo. Este acordo assinado por George W. Bush em New Delhi entra nesta categoria.

Recuando a 1968: é assinado em Washington, Londres e Moscovo o Tratado de Não Proliferação Nuclear (NPT), que hoje integra 188 Estados. Nele se reconhecem como potências nucleares legítimas os 5 detentores conhecidos de armas nucleares à época: EUA, URSS, Reino Unido, França e China. Estes comprometiam-se a caminhar gradualmente no sentido do desarmamento nuclear e os restantes comprometiam-se a nunca desenvolver esforços no sentido de construir ou possuir este tipo de armamento. Entre os (poucos) não signatários encontram-se a Índia, o Paquistão e Israel.

Avançando 6 anos: em 1974, a Índia torna-se o 6º país a fazer explodir um engenho nuclear, violando acordos sobre o uso pacífico de fornecimentos de um reactor e de água pesada com o Canadá e os EUA, respectivamente. A Índia definiu a explosão como sendo uma “peaceful nuclear explosion”.

Baseado no que já se sabe sobre este acordo, a Índia colocará 14 das suas 22 centrais nucleares sob inspecção internacional, separando os seus programas civil e militar. Em contrapartida, os EUA reconhecem-lhe o estatuto nuclear e deixam de tratar a Índia como uma potência nuclear clandestina.

Isto significa, entre outras coisas, que a Índia começará a adquirir tecnologia e matérias primas para a sua indústria nuclear, libertando os seus escassos recursos endógenos de urânio exclusivamente para o programa militar. Pior do que isso, a Índia não assume qualquer compromisso de limitar o crescimento do seu arsenal nuclear, prevendo-se que o possa incrementar ao ritmo de 50 ogivas/ano.

À luz da teoria Realista das Relações Internacionais, compreende-se perfeitamente a decisão de Washington em avançar nesta direcção: a Índia representa um mercado de 900 milhões de pessoas e é, possivelmente, a economia emergente com maior potencial de afirmação no século XXI. Por outro lado, admitindo que a China representa o maior desafio geoestratégico que se coloca aos EUA num horizonte previsível, a Índia constituiria, pelas suas dimensão e localização, o mais efectivo contra-poder à ascensão de Pequim; ironicamente, e do ponto de vista dos EUA, a Índia estaria para a China assim como esta esteve para a União Soviética desde meados dos anos 70 até 1991.

No entanto, tendo em conta os objectivos de não-proliferação nuclear que os EUA perseguem desde 1968 e com renovado ímpeto desde a Guerra do Golfo de 1991, não se compreende como é que se abre a porta do clube nuclear a um país que sempre se pôs à margem dos tratados internacionais nesta área, que tem um historial de risco na sua relação conflituosa com o Paquistão e que se reserva o direito de manter 1/3 das centrais nucleares isentas de inspecção, de continuar a produzir material para bombas (ao contrário das 5 potências nucleares) e a assinar o Tratado de Proibição de Testes Nucleares (Comprehensive Test Ban Treaty), que as mesmas 5 assinaram.

Num período em que os EUA, o Reino Unido, a França e Alemanha se batem para travar o programa nuclear do Irão e as conversações sobre o mesmo tema com a Coreia do Norte estão num impasse, este acordo estabelece dois precedentes perigosos:

1- Incentiva países que têm ou consideram desenvolver programas nucleares com fins militares a avançar e a resistir à pressão internacional.
2- Poderá gerar comportamentos semelhantes por parte de outras potências do “Grupo dos 5”. Imagine-se o que Washington diria se Pequim e Moscovo fizessem o mesmo em relação a Islamabad e a Teerão, respectivamente?

Como não me parece que os alvos de uma eventual explosão nuclear se sintam confortados pelo facto de esta ser “peaceful”, resta-nos esperar que, em ano eleitoral, o Senado dos Estados Unidos não ratifique o Tratado e o Congresso não aprove as alterações legislativas requeridas pelo seu articulado. Se há coisa que o mundo dispensa é que se abra mais as malhas do sistema de não proliferação.

04 março, 2006

Cobardia e Apaziguamento

COBARDIA E APAZIGUAMENTO


É vulgar dizer-se que toda a gente muda. O Dr. Mário Soares, na altura Primeiro-Ministro, chegou a dizer que só os burros é não mudavam. Mesmo dando de barato que tal seja verdade, certo é que uma pessoa mudar é uma coisa, transfigurar-se é outra bem diferente. E o Prof. Freitas do Amaral, homem político transfigurou-se: saltou de um posicionamento democrata-cristão tendencialmente conservador para um esquerdismo militante que o levou a dançar nas ruas com Soares, Carvalhas e Louçã. Até trocou a pose de estadista soturno por um estilo truculento e trauliteiro. Mas, enfim, cada um dança com quem lhe apraz.

O que me incomoda é o facto de a pessoa em causa ser o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal. E incomoda-me profundamente por vários motivos: porque o revoltam umas caricaturas de Maomé publicadas num jornal dinamarquês; porque não foi capaz de condenar de forma veemente os ataques a instalações diplomáticas de países amigos e aliados de Portugal como a Dinamarca e a Noruega; porque não percebeu (ou fingiu não perceber) que grande parte das manifestações de rua em Teerão, Damasco e outras cidades do Médio Oriente eram orquestradas e apadrinhadas pelos respectivos governos que tinham interesse em desviar a atenção das respectivas populações de outros problemas bem mais graves; porque, passadas umas semanas, continua a laborar no mesmo erro; porque menorizou a questão central da liberdade de expressão, pedra de toque das democracias ocidentais desde a Glorious Revolution de 1689 em Inglaterra; porque revelou cobardia ao solidarizar-se com os que respondiam às caricaturas à pedrada e com ameaças de morte e ao condenar a parte mais frágil, cujo pecado foi o de desenhar e publicar umas sátiras.

Finalmente, incomoda-me a tibieza com que as democracias europeias lidam com quem as ameaça, pressiona e violenta. O espírito de Munique de 1938 já nos devia ter mostrado sobejamente os limites e os riscos do apaziguamento.

03 março, 2006

Até Quando BCE?

ATÉ QUANDO BCE?


As previsões para a inflação da zona euro cresceram de 2.1% para 2.2%. E o que faz o Banco Central Europeu? Aumenta pelo 2º trimestre consecutivo as taxas de referência em 0.25%. As perspectivas de crescimento de um conjunto de países europeus semi-estagnados melhoram ligeiramente e eis que o BCE se aligeira a aumentar as taxas de juro. Para quê? Para amarfanhar a tímida recuperação económica?

Sempre fui favorável ao combate anti-inflacionista, até porque, para além das razões da ciência económica, cresci num país com uma taxa de inflação altíssima para os standards ocidentais (sim, é a Portugal que me refiro, não cresci na Bolívia ou no Brasil). No entanto, tal não significa que ache que se deva endeusar esse objectivo e perder de vista a saúde e a vitalidade económica de um conjunto de 12 países que não se medem apenas pelos valores da inflação ou do défice. Será que os senhores governadores do BCE querem para a Europa um destino semelhante ao do Japão dos anos 90: deflação e estagnação? Até quando BCE?