A ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA E OS DEPUTADOS
A problemática da Assembleia da República e da falta de quórum para as votações da semana de Páscoa foi o grande tema político das últimas semanas.
Como é habitual nestas situações, os media fizeram uma abordagem massacrante e enviesada do problema e as lideranças parlamentares encetaram a típica fuga para a frente. Os primeiros porque lhes cheirou a sangue e porque gostam de se apresentar como os moralistas da sociedade e os segundos porque são reféns dos primeiros e lhes falta coragem política para assumir o que deve ser feito em vez de reagir às pressões dos mass media.
Como diria o outro, eu sei do que estou a falar: Been there, done that. Vamos por pontos.
1- Os Deputados são eleitos pelos Portugueses e são responsáveis perante eles. Têm a dignidade de pertencerem a um órgão de soberania, respondem perante os eleitores e não são funcionários que tenham de picar o ponto e trabalhar das 9.00 às 17.00h. Têm autonomia política e funcional, garantida pela Constituição e pelo Regimento da AR.
2- Não obstante, os Deputados têm deveres estatutários, que passam, fundamentalmente, pelo cumprimento das funções para que foram eleitos. Isso pode ser realizado de várias maneiras, mas implica a presença/participação nos momentos nobres da vida parlamentar, maxime, as votações. A estes acrescem deveres funcionais, que decorrem do facto de os Deputados serem eleitos em listas partidárias que implicam um conjunto de compromissos perante o grupo parlamentar a que pertencem.
3- Posto isto, importa clarificar alguns aspectos: o Parlamento funciona mal e o problema não é o excesso de deputados (que não existe), nem as tradições parlamentares, muitas das quais são inócuas e não ferem o bom desempenho das funções de Deputado. Sem ser exaustivo, aponto quatro aspectos.
4- A desvalorização do Parlamento: de certa forma inevitável dada a complexidade técnica de muita actividade legislativa, o que ajudou a transpor grande parte desta responsabilidade para o Governo, poderia/deveria ser atenuada se: o Parlamento se munisse das assessorias técnicas necessárias (em quantidade e qualidade) que permitissem aos deputados fazer um acompanhamento qualificado da maioria dos assuntos; se os Deputados/Grupos Parlamentares tivessem a capacidade e coragem para recuperar alguma autonomia funcional, deixando de ser uma simples correia de transmissão das lideranças partidárias.
5- A dignificação dos Deputados: o Deputado não é reconhecido publicamente com a importância política e protocolar que o Protocolo de Estado lhe atribui. Dizer-se que o protocolo é irrelevante é falso. O protocolo tem regras e reflecte um estatuto e uma importância. Ninguém aceitaria que o Presidente da República ou o Primeiro-Ministro fossem a uma cerimónia pública e, lá chegados, lhes arranjassem uma cadeira na terceira fila com um pouco de favor. No entanto, toda a gente acha normal que os Deputados sejam preteridos por Governadores Civis havendo membros do Governo presentes, ou por directores-gerais e directores de institutos públicos. Enquanto que o Parlamento não fizer valer o estatuto dos Deputados, a nação dificilmente lhes terá respeito.
6- A disfuncionalidade do Parlamento: o acento tónico em plenários intermináveis e maçadores sobre temas que poucos entendem e a menos interessam são factores de desvalorização do espaço nobre que devia ser a sessão plenária e de desmobilização do deputado que sente que a sua presença é uma inutilidade. A intensificação do trabalho das Comissões e uma maior selectividade dos assuntos e da duração dos plenários, prestigiaria todos e evitaria o cenário confrangedor das bancadas vazias; mesmo que muitos estejam a ser mais úteis trabalhando no recato dos seus gabinetes, a imagem pública da sala das sessões semi-desertas é devastadora.
7- A dependência dos media: a maioria dos media e dos jornalistas, adopta perante a política e os políticos uma postura de superioridade moral que é sublinhada pelos “sermões” e “correctivos” que gostam de aplicar a quem exerce a actividade política em muito ultrapassando a mera função de informar. Esta atitude condiciona irreversivelmente a opinião pública e lança sobre o conjunto dos Deputados um manto de suspeição que poderá ser bem aplicado a alguns, mas não o é a todos. A culpa disto é repartida: de um lado temos muitos Deputados que vivem da proximidade (quase promiscuidade) com os jornalistas e que subordinam tudo o que pensam, fazem e dizem ao efeito positivo que pensam que tal poderá ter junto dos media; do outro, temos muitos jornalistas que percorrem os corredores à procura da intriga, da maledicência, da fofoca, que lhes valha uma primeira página no dia seguinte. Esta é uma actividade que interessa às duas partes e, como sempre, quer entre os Deputados, quer entre os jornalistas, pagam os justos pelos pecadores. A actividade política não pode prescindir dos media, mas deles depender é um dos factores geradores do politicamente correcto e do pensamento único, castrador da inovação, da criatividade, da alternativa, da coragem.
A mudança (no sentido positivo) da imagem que os Portugueses têm do Parlamento e dos Deputados é uma tarefa ciclópica, mas não impossível. Não acredito que seja realizável por quem lá está há muitos anos e que já se acomodou ao sistema, ou pior, que vive dele.
Sendo um adepto convicto do parlamentarismo que, combinado com a participação directa, é a forma mais perfeita de Democracia, estou convicto de que a regeneração do sistema político português terá de passar necessariamente pela Assembleia da República e pelos Senhores Deputados, legítimos representantes eleitos do Povo Português. No entanto, na actual conjuntura político-partidária, tal não passa de uma quimera.