11 fevereiro, 2014

Desprezo

DESPREZO

Há cerca de 10 anos, recebi uma missiva de um banco junto do qual tinha contraído um empréstimo à habitação que rezava algo como isto: para melhor servir os nossos clientes e para o seu conforto e comodidade, decidimos encerrar a nossa agência de Guimarães, pelo que teremos o maior gosto em recebê-lo nas nossas agências do Porto, da Maia, ou de Braga.

Lembrei-me deste episódio ao ouvir Passos Coelho a justificar o encerramento ou downgrading de dezenas de tribunais, acabando por dizer que podia haver resistências, mas que as pessoas ficariam melhor servidas e satisfeitas.

* Um jovem de Chaves em estado grave, passa à noite à procura de um hospital que o trate. Depois de 4 recusas vai parar a Lisboa.

* Na Direcção-Geral de Energia, 9 funcionários morreram de cancro, supostamente causado pelo amianto presente no edifício da DGE. O Secretário de Estado da tutela declara com um ar casual que aguarda autorização do Ministério das Finanças para mudar de edifício e que é imperativo encontrar um com renda mais barata. A este ritmo, qualquer dia até pode mudar a DGE para um T3….

* Os IPO’s queixam-se de falta de medicamentos e da impossibilidade de providenciar os melhores tratamentos em tempo útil em vários casos.

* No Hospital de Portimão há doentes a quem é pedido que tragam a marmita com os medicamentos e equipamento para o respectivo tratamento.

* As 85 obras de Miró são colocadas à venda em Londres ao arrepio das normas legais e do interesse artístico que a colecção possa ter (ou não) para o país.

* Escolas com amianto continuam a funcionar como se não houvesse amanhã. Se a situação se prolongar, pode mesmo não haver amanhã para alguns alunos, professores e funcionários. Trata-se apenas, é claro, de um problema orçamental.

* Regime extraordinário de protecção de devedores de crédito à habitação feito à medida dos interesses da banca. De um universo de 124.000 situações de incumprimento, apenas 1600 (1.30%) requereram o acesso ao regime e só 300 (0.24%)  tiveram deferimento.

São casos retirados de forma quase randomizada das notícias. Nem vou falar em detalhes sobre a inclemente liquidação dos funcionários públicos e pensionistas. Tampouco vou tecer mais considerações sobre a forma punitiva como os rendimentos do trabalho têm sido tratados em sede fiscal relativamente a outras fontes de rendimento.

Vou apenas escrever sobre o Desprezo.

Em 31 de Julho de 2012, escrevi um post intitulado “Indiferença”. Reproduzo um trecho desse texto:

Indiferença. A governação em muitos países da Europa (e não só) tem-se pautado por muita incompetência, opacidade, corrupção, falta de sentido estratégico, oportunismo político, ausência de sentido de estado, ignorância do que é o serviço público. Não obstante este extenso e grave rol de defeitos, há um que é pouco mencionado, mas que sobressai: a Indiferença.


Volvidos 18 meses, novamente motivado pela actividade governativa, vejo-me compelido a escrever outro post com um adjectivo diferente: DESPREZO.

Sim, o post da Indiferença, cuja leitura mesmo assim me permito sugerir, já é insuficiente para qualificar as políticas e atitudes deste governo,.

Aquilo a que assistimos é ao Desprezo pelas pessoas.

Só o Desprezo pelas pessoas pode justificar os permanentes e repetidos maus-tratos infligidos a quem descontou durante uma vida para ter direito a uma modesta reforma.

Só o Desprezo pelas pessoas torna entendível que se penalize com sucessivos cortes de salários e aumentos de impostos, contribuições e horários os funcionários públicos, ainda alvos de uma guerra psicológica com contornos gravemente persecutórios.

Só o Desprezo pelas leis pode explicar os sucessivos atropelos à Constituição e às leis que o Governo pratica na prossecução dos seus objectivos.

Só o Desprezo pelas instituições do Estado democrático podem motivar o desrespeito pelo Parlamento e pelo Tribunal Constitucional, tratados com petulância e indignidade.

Para o governo tudo é matemática orçamental, as pessoas não contam.
Bagão Félix

Esta declaração de Bagão Félix, produzida numa entrevista ao jornal i (http://www.ionline.pt/artigos/portugal/bagao-felix-portugal-esta-transformar-se-num-bazar-activos ), sintetiza a atitude do actual governo. Só o défice e a dívida contam, embora esta continue a subir e naquele, só no 3º ano é que os objectivos foram atingidos.

As pessoas, a generalidade das pessoas, são meros detalhes desta cavalgada insana. Quando se opõem aos desígnios governamentais, deixam de ser detalhes e são promovidos a empecilhos e se os travam, são atacados, enxovalhados, alvo de retaliações.

Só merecem respeito os credores internacionais e financeiros do Estado, os Estados e instituições internacionais aos quais o Governo presta humilhante vassalagem e alguns privilegiados internamente que são tratados com punhos de renda.

Os restantes, quase todos nós, são tratados com o Desprezo de quem calca erva daninha: o Desprezo de quem nos julga irrelevantes e desprezáveis.

Isso faz de quem nos governa com Desprezo, desprezível…..como uma barata que se esmaga com um esgar de nojo.



Nota final:

Esta Indiferença vai alienando ainda mais os representados dos seus pseudo-representantes. Frequentemente, a resposta daqueles é retribuir a Indiferença: não votam; desligam-se da política e desprezam os políticos.

É merecido e compreensível, mas não ataca a raiz do problema. A solução passa pela remoção implacável e duradoura de quem despreza os cidadãos e é alheio aos seus problemas. A Indiferença num governante é um pecado sem perdão e assim devia ser encarada e tratada.

A “pena” para o Desprezo não pode ser menor.

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