18 janeiro, 2014

Boca no Trombone

BOCA NO TROMBONE


Robert Gates foi Secretário de Estado da Defesa dos Estados Unidos de 2006 a 2011. Há duas coisas nele (ou em qualquer outro) de que não gosto:

1- Foi Secretário da Defesa com George W. Bush e com Barack Obama. Não gosto de quem serve Deus e o diabo, de quem defende uma coisa e o seu contrário. Isto tem um nome: vira-casacas (turn-coat). E tem uma caracterização: oportunismo.
2- E pôs a boca no trombone, isto é, fez críticas e denúncias à administração de que fez parte, depois de sair. É cobarde. E quando o trombone é materializado num  livro (“Duty: Memoirs of a Secretary at War”), é oportunismo outra vez.

Porque é que trago este assunto a Tempos Interessantes? Porque, apesar dos aspectos negativos referidos, o que é dito por um insider indiscreto não é necessariamente mentira. E no caso de Gates, não é.

Por não ser, proponho um pequeno exercício:  um cotejo entre o que Gates disse de Obama e da sua administração em Janeiro de 2014 e o que se escreveu ao longo do tempo em Tempos Interessantes sobre o mesmo assunto. As minhas citações a azul, as de Gates a verde.

Francamente negativo foi o anúncio de um deadline de 18 meses para iniciar a retirada. Supostamente, para pressionar o governo afegão a arrepiar caminho e para dar tempo ao novel exército afegão para assumir o grosso da luta contra os Taliban. Na realidade, o factor principal foi a vontade que Obama tem de fugir a sete pés do Afeganistão e a necessidade de dar um rebuçado à ala pacifista maioritária no Partido Democrata, à qual pertence. [….]
Dentro de 18 meses, o exército afegão ainda não terá a dimensão e a capacidade para arcar autonomamente com o esforço de guerra. Pior do que isso, é que os Taliban e a Al-Qaeda também vêem e lêem as notícias e sabem que lhes basta resistir durante 18 meses e esperar que o inimigo comece a fazer as malas. Então sim, o espírito de Saigão poderá voltar para assombrar a Casa Branca, poderá não haver margem para gastar mais uns meses a deliberar e a escolha poderá ser apenas entre a derrota total e o reforço maciço de tropas. Por outras palavras, um beco sem saída. É evidente que os 18 meses não são inocentes: para além de placar o Partido Democrata, em Julho de 2011 estar-se-á a 16 meses das eleições presidenciais norte-americanas e Obama quer retirar as tropas do Afeganistão a tempo de o Afeganistão sair da mente e da memória do eleitorado, ou seja, a prioridade é vencer em 2012; a guerra está em segundo plano.
IT’S 3 A.M. AND THE RED PHONE RINGS – 31/12/2009 em


Gates asserts that Obama had more than doubts about the course he had charted in Afghanistan. The president was “skeptical if not outright convinced it would fail,” Gates writes in Duty: Memoirs of a Secretary at War.


in “The Washington Post” – 07/01/2014  em


1-   A maioria das declarações e decisões de Barack Obama sobre a Guerra no Afeganistão são eleitoralistas e são prioritariamente tomadas tendo em conta o seu calendário eleitoral.
As declarações de Obama em 2008 proclamando a bondade da Guerra no Afeganistão e o erro da Guerra no Iraque, reflectiam os seus objectivos eleitorais: atacar uma guerra impopular iniciada por George W. Bush e apoiada pelo seu adversário eleitoral, John McCain; defender uma outra guerra para obviar a eventuais ataques do seu adversário de que seria soft em política externa. O seu percurso entre 2009 e 2012 leva-me a crer que Obama se opunha a ambas as guerras, mas que era capaz de apoiar ambas se tal lhe valesse votos.
A GUERRA QUE JÁ ERA (OBAMA’S WARS 3) – 25/02/2012 em


“Hillary told the president that her opposition to the [2007] surge in Iraq had been political because she was facing him in the Iowa primary. . . . The president conceded vaguely that opposition to the Iraq surge had been political. To hear the two of them making these admissions, and in front of me, was as surprising as it was dismaying.”
in “The Washington Post”





Falta a Obama o fighting spirit e a consciência geopolítica de que o poder e a disponibilidade para o usar ainda são factores incontornáveis nas Relações Internacionais.
IT’S 3 A.M. AND THE RED PHONE RINGS em


Obama remains uncomfortable with the inherited wars and distrustful of the military that is providing him options.
in “The Washington Post”


2-   A Administração de Obama procura a todo o transe sair do Afeganistão o mais rapidamente possível.
Isso resulta claro. Desde 2009 que a facção liderada pelo Vice-Presidente Joe Biden (um autêntico inepto em política externa e um fraco) defende efectivamente uma retirada.
A GUERRA QUE JÁ ERA (OBAMA’S WARS 3) – 25/02/2012 em

Porém, Allawi não detinha a maioria absoluta e o Irão manobrou nos complexos bastidores da política iraquiana para pressionar outros partidos xiitas a apoiarem Maliki. Após meses de impasse, esta foi a solução que prevaleceu, ao arrepio da vontade dos eleitores e com a bênção do inenarrável e inepto Joe Biden, Vice-Presidente dos Estados Unidos.
AL-QAEDA RENASCE NO IRAQUE – 15/01/2014 em


Biden is accused of “poisoning the well” against the military leadership. Thomas Donilon, initially Obama’s deputy national security adviser, and then-Lt. Gen. Douglas E. Lute, the White House coordinator for the wars, are described as regularly engaged in “aggressive, suspicious, and sometimes condescending and insulting questioning of our military leaders.”
in “The Washington Post”


3-   Para todos os efeitos, para a Administração Obama, a Guerra no Afeganistão já acabou.
Sim, os combates vão ser retomadas dentro de um ou dois meses e ainda haverá tiroteio em 2013, mas para todos os efeitos, no que aos EUA diz respeito, a guerra acabou.
 Acabou, porque Obama reforçou o contingente e ao mesmo tempo definiu o começo da retirada dos reforços.
 Acabou, porque Obama ordenou que a retirada desses reforços se conclua 2 (dois!!!) anos antes do que pretendiam os seus comandantes militares (e 2 (dois!!!) meses antes das eleições).
 Acabou, porque o fim das missões de combate da NATO vão serantecipadas em cerca de 18 meses em relação ao calendário definido na Cimeira de Lisboa.
Acabou, porque a Administração Obama está desesperada por chegar a um acordo qualquer com os Taliban.
Acabou, porque a Administração Obama aceita falar com quem disse que nunca falaria e aceita condições que disse que nunca aceitaria.
Acabou, porque os Taliban não são parvos e perceberam há muito que não precisam de se esforçar demasiado, nem ceder muito, porque Obama está desesperado para assinar um qualquer acordo que lhe permita sair do Afeganistão.
Acabou, porque já se percebeu que Obama não tem o sentido de estado e de serviço público necessários para levar a cabo uma tarefa árdua, mesmo que isso custe alguns votos.
Ficou a saber-se, pois, que a Guerra do Afeganistão… já era.
A GUERRA QUE JÁ ERA (OBAMA’S WARS 3) – 25/02/2012 em


“I was pretty upset myself. I thought implicitly accusing” Petraeus, and perhaps Mullen and Gates himself, “of gaming him in front of thirty people in the Situation Room was inappropriate, not to mention highly disrespectful of Petraeus. As I sat there, I thought: the president doesn’t trust his commander, can’t stand [Afghanistan President Hamid] Karzai, doesn’t believe in his own strategy, and doesn’t consider the war to be his. For him, it’s all about getting out.”
in “The Washington Post”


Esta última citação de Robert Gates encaixa na perfeição na minha última citação (a azul), sendo que o post a que pertence data de 25 de Fevereiro de 2012. Há dois anos que era claro para Tempos Interessantes que para Obama, sair do Afeganistão a todo o transe era o que importava. E nos seus timings de conveniência política. Obviamente. Pena é que Robert Gates não pusesse a boca no trombone quando podia fazer a diferença.



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