22 novembro, 2017

O Princípio do Fim





O PRINCÍPIO DO FIM
 

O Bundestag eleito em 2017 tem o maior número de deputados de sempre (709) e, também, o maior número de grupos parlamentares – 6.


Nos últimos anos temos assistido ao endeusamento da Chanceler alemã Angela Merkel. As razões são várias: é a líder de uma grande potência ocidental há mais tempo em funções, lidera um país que prospera cada vez mais e que é uma implacável máquina exportadora, tem uma postura normalmente calma, ponderada e equilibrada; também tomou algumas opções políticas populares para um nicho político, social e mediático com grande exposição pública, tais como, a abrupta antecipação do fim da indústria nuclear na Alemanha (2011) e a abertura das fronteiras germânicas a uma avalanche de refugiados e imigrantes (2015; finalmente, como se sabe, o establishment político-mediático entrou em órbita com o Brexit, com a eleição de Donald Trump e com a contínua ascensão de partidos nacionalista e, no desespero, convenceu-se que Angela Merkel seria um farol da liberdade e putativa líder do Ocidente, i.e., baluarte do statu quo.

No entanto, a realidade era e é diferente. Se é verdade que Merkel lidera um país que é um sucesso económico, já a sua ponderação e equilíbrio são mais questionáveis. Um exemplo disso foi a repentina e injustificável antecipação do fim do nuclear da Alemanha, reacção intempestiva e sem fundamento ao desastre de Fukushima no Japão, desde logo porque a Alemanha não se encontra numa zona de actividade sísmica e não é, obviamente, ameaçada por tsunamis, já para não referir os enormes cistos económicos da decisão. Outro exemplo foi a epifania de Merkel em 2015: a abertura total das portas da Alemanha a refugiados e imigrantes deu-lhe uma enorme popularidade instantânea, mas como era previsível, valeu-lhe uma crescente oposição, mesmo dentro do seu partido, quando a poeira assentou e a realidade de uma decisão emotiva e precipitada se tornou mais clara: o excesso de refugiados/imigrantes, os atentados terroristas, a tentativa de impingir os custos da generosidade alemã a outros países europeus, desgastaram-lhe a imagem e o apoio, que foi sendo transferido para outros partidos. E não podemos olvidar os enormes custos económicos, sociais e pessoais que a brutal política scroogiana, exigida por Berlim, impôs à Europa meridional.

Mesmo assim, Merkel chegou a 2017 e às suas 4ª eleições na condição de líder da CDU com a confiança das vitórias anteriores e da auréola de invencibilidade. A previsível (e consumada) débacle do SPD que tem servido de parceiro menor à CDU/CSU, acentuava a confiança numa grande vitória.

Porém, o desgaste inexorável do tempo e a cobrança eleitoral das más decisões, a saturação com o establishment central cada vez mais uniforme, desabaram sobre o SPD, a CDU e a CSU. Se, no caso do primeiro, os resultados foram devastadores (os piores do pós-II Guerra Mundial), a CDU e a CSU caíram o suficiente para ficarem muito longe da maioria absoluta.

 
Este gráfico mostra claramente a dimensão das perdas da CDU/CSU e do SDP, que equivalem aos enormes ganhos do AFD e do FDP, cerca de 14%.


Dois meses volvidos , ainda não há governo. O FDP (Liberal) abandonou as negociações com a CDU, CSU e os Verdes, o que parece indiciar que Merkel se terá aproximado mais dos Verdes do que dos Liberais o que, a ser verdade, é espantoso e incompreensível. O azedume da CDU após a ruptura mostra também a frustração e o desespero de Merkel. Igualmente significativo é o facto de os focos principais de divergência entre os 4 partidos terem sido precisamente aqueles onde Merkel falhou: imigração/refugiados, ambiente e fiscalidade.

Neste momento, após o SPD ter reiterado que não vai voltar a ser o trampolim de Merkel, restam 3 opções: recomeço das negociações entre CDU, CSU, FDP e Grunen; governo minoritário; dissolução do Bundestag e novas eleições. A Chanceler parece querer a última, o Presidente Frank Walter Steinmeier prefere uma solução governativa no actual quadro parlamentar. Eos “vencedores” das últimas eleições, a AFD (direita) e o Die Linke (esquerda), vão assistindo de palanque à desorientação vigente.

A CDU de Angela Merkel até pode vencer de forma mais expressiva umas eventuais novas eleições, ou conseguir liderar um governo sem elas, mas o que é claro é que Merkel entrou no princípio do fim do seu percurso na liderança da Alemanha e da EU.

17 novembro, 2017

Pecado da Gula



PECADO DA GULA
(OU A VITÓRIA DA REALIDADE SOBRE O SONHO)

Os Curdos  são conhecidos por serem a maior nação sem estado do mundo. Habitando um território que pertence a 4 países (Turquia, Iraque, Síria e Irão) mais poderosos e hostis à ideia de autodeterminação curda, o mais certo é continuarem detentores daquele desagradável estatuto por muito tempo.

 
Este mapa do Médio Oriente mostra as áreas povoadas pelos Curdos.
in “STRATFOR” at www.stratfor.com

Apesar de os Curdos da Turquia constituírem o contingente mais numeroso (estimativas variam entre os 15 e os 20 milhões), foi no Iraque (4 a 5 milhões) que conseguiram alcançar um grau de verdadeira autonomia. Porém, tal resultou sempre em maior medida de contingências e decisões exógenas do que da simples vontade e iniciativa dos Curdos do Iraque.

As raízes da autonomia dos Curdos iraquianos remonta às brutais campanhas de repressão levadas a cabo por Saddam Hussein, das quais se destaca o ataque químico a Halabja em 1988. Quando Washington e os seus aliados derrotaram o Iraque na Guerra do Golfo (1990/91), os Estados Unidos, o Reino Unido e a França impuseram uma no-fly zone no norte do Iraque, efectivamente barrando o acesso da Força Aérea Iraquiana ao Curdistão Iraquiano, colocando os seus habitantes razoavelmente a salvo da repressão. Na década seguinte, na Guerra do Iraque, os EUA, o Reino Unido e a Austrália derrotaram e derrubaram o regime Baath de Saddam Hussein. Este novo desenvolvimento deu aos Curdos margem de manobra para assumir de forma assertiva a sua autonomia que, com apoio Anglo-Saxónico, viria a ficar plasmado na Constituição do Iraque de 2005, ganhando forma no Governo Regional Curdo (KRG na sigla inglesa).

As relações entre Irbil (capital do KRG) e Bagdad flutuam entre a cooperação com reservas, a frieza e a hostilidade. Até que, em 2014, apareceu outro game-changer: o Estado Islâmico (IS) varreu o Norte e o oeste do Iraque, pondo o exército iraquiano em debandada e os Peshmerga curdos (milícia curda) em dificuldades. Estes, contudo, recompuseram-se e recuperaram alguns territórios, nomeadamente a cidade e a província de Kirkuk. Ora, parte desses territórios, como Kirkuk, não pertencia ao KRG nos termos da constituição de 2005, mas foram por eles dominados e explorados (i.e., petróleo) durante os últimos 3 anos. Neste período, o KRG desligou-se o quanto pôde de Bagdad e recorreu à Turquia para apoio, mormente para escoar o seu petróleo para o exterior à revelia do governo central. O KRG também beneficiou do facto de Iraque, Irão, Turquia e EUA precisarem do seu apoio no combate ao IS.

 
Neste mapa de Setembro deste ano, pode ver-se a laranja o território do KRG e a amarelo o território tomado pelo KRG desde 2014.
in “STRATFOR” at www.stratfor.com


Conclui-se, pois, que os Curdos do Iraque foram aproveitando janelas de oportunidade abertas por 3 guerras (1991, 2003 e 2014) e pelos interesses conjunturais das potências endógenas e exógenas no Médio Oriente. Chegados ao final de 2017, essas guerras terminaram, ou estão, aparentemente, nos seus estertores finais e, passadas as guerras, restam os interesses.

O interesse dos Curdos era avançar da autonomia para a independência e o mais cedo possível enquanto as hostilidades ainda não cessaram e os EUA ainda estão presentes e envolvidos no terreno. Daí o referendo sobre a independência convocado por Massoud Barzani (Presidente do KRG) para o passado dia 25 de Setembro, no qual o "Sim" à independência obteve 92% dos votos.

Porém, Barzani rapidamente descobriria que a janela já não estava aberta, se é que alguma vez esteve. Era uma janela falsa que ocultava uma sólida parede. Tal já era óbvio antes do próprio referendo com a oposição à realização do mesmo a afluir de todo o lado: Bagdad, Teerão, Ancara, Damasco, Londres, Washington, Riyadh etc. Esta oposição tinha um cariz hostil e ameaçador por parte dos países directamente envolvidos. Assim, após o referendo, a Turquia e o Irão fecharam as fronteiras com o Curdistão, cortaram os laços comerciais e proferiram ameaças explícitas de intervenção militar; os países do Golfo Pérsico cancelaram as ligações aéreas com o KRG.

O coup de grâce foi desferido pelo próprio Iraque cujo exército, com o apoio das Hashd al-Shaabi (designação oficial de várias milícias xiitas), recuperaram pela força e pela pressão todos os territórios ocupados pelos Peshmerga em 2014/15. Subitamente, o Curdistão Iraquiano descobre que viveu numa ilusão e que, na hora da verdade não tem aliados permanentes; apenas inimigos e alguns amigos, daqueles que só dão conselhos.

Isto não é novidade, é assim desde a I Guerra Mundial quando a perspectiva de autonomia seguida de independência para os Curdos em 1920 (Tratado de Sèvres), desaguou na partilha do território entre a Turquia, Pérsia e os Mandatos Britânico (Iraque) e Francês (Síria) em 1923 (Tratado de Lausanne). Ontem como hoje, a miragem da independência esfumou-se na realidade da geopolítica, do poder e dos interesses nacionais.

O que é surpreendente é como um político experiente como Massoud Barzani pôde acreditar que a Turquia, o inimigo nº 1 dos Curdos podia evoluir de um regime de cooperação com o KRG que a beneficiava e enfraquecia o Iraque, para um apoio à independência que sempre foi anátema para os Turcos.
Eu arriscaria dizer que incorreu no pecado da gula: pensou que tinha créditos que lhe davam uma hipótese de alcançar a independência e entrar na História como o líder que levou os Curdos à liberdade e à independência. A verdade é que não os tinha, os credores são os outros que detêm o poder real e Barzani demitiu-se, a caminho de uma nota de rodapé.




14 novembro, 2017

C'est Excessivement Grave



C’EST EXCESSIVEMENT GRAVE

 
Lançamento do Hwasong-12 IRBM (Intermediate Range Ballistic Missile) com alcance estimado na ordem de 4500km. Este míssil sobrevoou o Japão nos dois últimos testes.

Nos últimos meses tem havido enorme crispação, agitação e alarme por causa da Coreia do Norte, país de pequena-média dimensão geográfica, demográfica e económica, mas com uma capacidade singular para causar reboliço e colocar as principais potências mundiais em sucessivas consultas, cimeiras e reuniões.

Este tom alarmista, a roçar a histeria e a obsessão como vai sendo característico do século XXI é, como já aqui escrevi, um pouco exagerado. Senão vejamos:

1- Cada vez que a Coreia do Norte testa um míssil, já nem falo dos testes nucleares (já foram 5), os governos da Coreia do Sul e do Japão reúnem de emergência, os Estados Unidos debitam mais sanções, a China resmunga e umas dezenas de países emitem declarações, lamentos e condenações.

Para quê? Só este ano, a Coreia do Norte já testou 12 mísseis balísticos, incluindo ICBM’s e continua a fazê-lo. O bulício que sucede a cada teste é uma mise en scène inconsequente. A experiência demonstra a sua futilidade e Pyongyang não faz mais nem menos testes por causa disso. Tornou-se um ritual: um dispara, os outros pulam e gritam e a vida continua.

2- Outro ritual vigente é executado por representantes dos serviços de informações dos EUA, do Japão e da Coreia do Sul, que têm audiências nos respectivos parlamentos, onde comunicam em tom grave e solene que a Coreia do Norte levará a cabo novos ensaios de mísseis, ou, alternativamente, testes nucleares. E os políticos reagem com gravidade, ao estilo do personagem de “Os Maias” de Eça de Queiroz, o embaixador da Finlândia em Lisboa, Steinbroken de seu nome, que gostava de exclamar “C’est três grave. C’est excessivement grave!”, a propósito de tudo e de nada.

Comunicar que a Coreia do Norte irá fazer novos testes com ar de quem acabou de realizar um sofisticado trabalho de espionagem é o equivalente a eu, que escrevo este post na esplanada da praia de Mindelo, declarar solenemente que logo à noite a maré será alta. Outro exercício inconsequente.

3- Ao contrário do que até o circunspecto Vladimir Putin declarou, um conflito armado na Península da Coreia não será uma catástrofe à escala global. Será, sem dúvida, uma catástrofe na Península da Coreia e, eventualmente, nos arredores, mas não à escala global. Portanto, não vale começar a aprovisionar os bunkers.

4- Mais importante é que a guerra, sendo um cenário possível, não é o mais provável. Como também já escrevi em Tempos Interessantes, Kim Jong Un e a liderança norte-coreana não são uns doidos varridos irracionais. A sua sobrevivência, a do regime e a do seu status é a sua prioridade e tudo farão para a garantir. Concomitantemente, só provocarão a guerra numa situação limite (real ou percepcionada).

Certo é que todas as ameaças, sanções, condenações, protestos e exercícios militares foram inúteis para provocar a alteração comportamental da Coreia do Norte. Goste-se ou não, a Coreia do Norte já é uma potência nuclear o que torna a opção bélica mais complicada e perigosa. Sendo claro que o arsenal nuclear de Pyongyang serve um propósito defensivo de dissuasão de ataques, ou tentativas de mudança ou decapitação do regime, o mais realista seria assumir mais este fracasso do regime de não-proliferação nuclear e ignorar olimpicamente a Coreia do Norte. A actual espiral sancionatória e belicista est grave. C’est excessivement grave, como diria o inefável Steinbroken.