PERDIDOS NAS PIRÂMIDES
Astérix, Obélix e Panomarix perdidos na Pirâmide, in "Astérix e Cleópatra" de Goscinny e Uderzo.
A actuação, ou melhor, a retórica do governo dos EUA durante a vaga de manifestações e revoltas que varre o Médio Oriente e, especialmente, o Norte de África, é um vector, embora periférico, destes eventos que merece alguma análise.
Em 2003, George W. Bush apresentou a promoção da democracia como uma prioridade dos Estados Unidos no Médio Oriente (Freedom Agenda), encarando-a como a melhor estratégia para inverter a ascensão do radicalismo islâmico e de outros totalitarismos. No Iraque, tal foi executado pela força de uma invasão e ocupação militar; no resto da região, a pressão e a persuasão seriam as metodologias adoptadas. O ponto culminante desta política seria o discurso da Secretária de Estado Condoleeza Rice na Universidade Americana do Cairo em 2005, no qual pediu liberdade e democracia para o Médio Oriente: “…Freedom and democracy are the only ideas powerful enough to overcome hatred, decision and violence.”
Como resultado desta pressão pública e privada, Mubarak autorizou as eleições legislativas mais democráticas (leia-se, menos condicionadas) do seu regime, nas quais 20% dos eleitos estavam ligados à Irmandade Muçulmana. No contexto desta política, também o Líbano e a Autoridade Palestiniana realizaram eleições.
Depois de 2006, à medida que a Administração Bush se aproximava do ocaso, que os problemas securitários e sectários no Iraque se adensavam e com a vitória eleitoral do grupo político-terrorista radical Hamas na Palestina, o empenho dos EUA na Freedom Agenda atenuou-se.
O reflexo condicionado de Obama de que o que vem de George W. Bush é negativo, levou-o a romper definitivamente com essa política, abstendo-se de realizar qualquer esforço substantivo de promoção da democracia. Nesse sentido, as declarações de Hillary Clinton sobre os direitos humanos na China, em 2009, e no Bahrein, em 2010, são sintomáticas, reflectindo “what seems to be an intractable piece of the Obama administration’s character: a deeply ingrained resistance to the notion that the United States should publicly shame authoritarian regimes or stand up for the dissidents they persecute.” (Jackson Diehl; “Dangerously silent on human rights”; Washington Post, 03/01/11).
Assim, quando as revoltas irromperam na Tunísia, no Egipto, no Iémen, no Bahrein, na Líbia, a reacção dos EUA foi de apoio ao statu quo, fosse pela voz de Obama, do Vice-Presidente Joe Biden, ou da Secretária de Estado Hillary Clinton. Contudo, gradualmente as revoltas foram adquirindo uma dinâmica imparável e a Administração Obama pareceu perdida.
Por um lado, sofria a pressão interna daqueles que já a haviam criticado por não apoiar as manifestações oposicionistas no Irão, por outro lado, sentia-se vinculada aos governos vigentes e ainda, por outro, começou a sentir que estava a perder o comboio da mudança (change). Suprema ironia!
Seguiram-se uns dias atormentados, em que os EUA pedem, exigem, sugerem uma coisa e o seu contrário, numa sucessão de intervenções que irritaram os governos árabes aliados de Washington e que desagradam também aos manifestantes.
Da desorientação ao ridículo foi um pequeno passo: a Administração Obama tentou passar insistentemente, através dos media, a mensagem de que exerce real influência e até algum controlo sobre os acontecimentos no Egipto. Publicitaram-se contactos, pressões e exigências, canais de comunicação com generais conhecidos e opositores desconhecidos, reuniões permanentes, é até enviado um emissário especial, cuja especialidade permanece desconhecida, engolida na voragem dos acontecimentos.
A realidade é, obviamente, outra. A Administração Obama mais não fez do que um enorme esforço de spinning para convencer a opinião pública norte-americana de que controlava e/ou influenciava o curso dos eventos. Os avanços e recuos do ritmo e dos fluxos dos acontecimentos nas praças do Cairo e de Alexandria demonstram bem a falácia dessa mensagem. O que aconteceu foi determinado, controlado e influenciado pelos equilíbrios de forças no Egipto, principalmente pela determinação dos manifestantes revoltosos, pela neutralidade activa das forças armadas e pela rápida decomposição do regime.
Para os anais do desfasamento entre o discurso e a realidade, deixo a declaração proferida por Hillary Clinton nos finais de Janeiro de 2011: “Our assessment is that the Egyptian government is stable and is looking for ways to respond to the legitimate needs and interests of the Egyptian people.”
Menos de 3 semanas depois, Mubarak desapareceu de cena e a velha ordem implodiu. Barack Obama, Joe Biden e Hillary Clinton ainda procuravam a saída da pirâmide onde pareceram estar enclausurados durante toda a crise!